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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Vício IV - MQ


Enquanto oiço a terceira sinfonia de Brahms e olho em frente para a folha de papel recordo-me que, hoje, ainda não me lembrei dela. Apetece-me escrever, criar e recriar, mas também me apetece dormir. Deitar-me de bruços no colchão poeirento do meu minúsculo quarto e deixo-me adormecer até depois de amanhã.
Chove lá fora.
Um estranho cansaço invade-me o baixo ventre. Uma sinistra letargia. Uma vontade de deixar o tempo trepar por cima do tempo. Sem a obrigação diária de o contar. Decido, então, graciosamente, ir preparar uma bebida. Jameson com Castelo e um chá preto forte para me aguçar as reminiscências e deixar fluir a escrita. Deixo-me estar. Recosto-me. Aprecio a música e a bebida encorpada. Deixo a ocasião morrer lentamente, como um duche de água quente. Levo um cigarro à boca. Acendo-o com um fósforo que, ainda quente, bate silenciosamente no cinzeiro que o meu avô paterno me ofereceu. Relíquia roubada de um casino. Mais uma das suas loucas e boémias noites.
Agora sinto o corpo a ficar ainda mais mole e apático. O motor arrefeceu e não vou conseguir cuspir uma palavra. Levanto-me e vou até à janela. Olho a rua por raros instantes. O trânsito de final de dia vai acumulando fiéis. Dirigem-se, em fila indiana, para o dia do julgamento final.
Recordo-me dos seus maravilhosos e sofisticados sapatos de verniz. Aqueles que levava quando saíamos para dançar. Para o ballet. Uma vez. Só uma vez, fizemos amor com eles calçados. Nem tirámos a roupa.
O copo está vazio e o chá arrefeceu. Diferente. Estou estupidamente tranquilo e erradamente calmo. Preciso de outro copo a transbordar memórias. Desta vez encho o copo até cima. Ignoro a fronteira.
Agora é a quinta sinfonia de Brahms que se faz soar. Mais doce. Menos distante. Um sorriso parece querer acordar no meu rosto barbudo. Mais um resultado mágico da fusão entre prazeres e recordações.
Ainda chove lá fora.
De repente, um poema surge-me no horizonte. Uma série de palavras cruzadas e enamoradas em verso. Sem significado, mas com alma. Metafísico. Uma intensidade eléctrica percorre-me o corpo, de fio a pavio. Começo a escrever sem pensar. Deixo-me ir. Deixo fluir. Deixo-me desabafar com o papel e esqueço-me da ampulheta. Movimento frenético. O cigarro apaga-se preso entre os lábios. Tudo são cinzas. Fecho os olhos. Afago cabelo. Respiro fundo. Cuspo o cigarro. Abro os olhos. Numa fúria rasgo a folha. Rasgo-a em pequenos pedaços. Minuciosamente. Até ver o fruto da minha criação perder-se para lá do infinito. Paro e bebo o resto do copo num só trago. Numa só voz. A música parou. Fico em silêncio.
Deixou de chover lá fora.


Vício IV by MQ

quarta-feira, 5 de março de 2014

Vicio III - MQ


Passava as noites naquele antro de insetos de frustração embriagada. A catedral do vício, o pináculo da má vida ou o poço do elevador da existência. Servia-me de um, dois, dez copos de whiskey barato a preço de ouro e dialogava com putas, numa linguagem pobre e apodrecida. Ali sou condenado à morte lenta e desafio a verdade com pinceladas de veneno.
Depois ia para casa dormir. Dormir e escrever. Escrever este conto.
Escrever, compor e redigir o melhor de todos os contos alguma vez escrito. Cru e abrutalhado. Frio.
Escrevo até me doerem as mãos, as costas, o peito e o ser. Até me doerem os pés de tanto palmilhar ruínas.
Escrevo uma obra-prima que vai diretamente para o topo dos contos mais lidos e decorados de sempre. Diretamente para o caixote do lixo. Diretamente para o além. Onde nunca chegou a ser.
Quero voltar para cama e dormir até às três da tarde, quatro da tarde, cinco da tarde. Jantar de micro-ondas à luz das velas. Seia dos pobres de espirito. Jantarada acompanhada a bagaço rançoso. Manhoso bagaço caseiro.
O vício resiste em mim. Devora-me o amago. Viola-me as entranhas. Sodomiza o livre arbítrio.



Vicio III by MQ




Vicio II - MQ


Apetece-me caminhar desvairado pelas ruas desta aldeia urbana, testemunha do abandono constante e da miséria da carne. Apetece-me palmilhar as sete partidas, ou mesmo as sete colinas. Apetece-me fugir pelas vielas ensopadas da chuva de Novembro e andar, andar, andar, voar. Ao encontro de estranhos solitários, marinheiros, estrelas de teatro de revista, jovens meretrizes, jogadores de xadrez profissionais, peões e cavaleiros.
Começo por descer a rua bem devagar, sem plano delineado, sem esperanças, uma vontade de rir e de chorar. Uma vontade de caminhar até mais não conseguir andar. Sapatos caros e desfeitos de tanto andar. Pequeno-almoço junto ao rio, ovos cozidos e cerveja económica. Solidão de barriga cheia.
Descanso e penso mais um pouco. Descanso ainda mais e observo os poucos transeuntes. Podemos definir camadas sociais pelos horários laborais. Só com base nos horários. Às seis da matina vejo pobres, mas às dez da manhã vejo ricos.
Levanto-me quando começo a sentir frio e vou comprar o jornal a um desses quiosques perdidos. Acordo finalmente para a realidade produzida e brilhantemente realizada das notícias cruas do mundo. Dá-me vontade de rir. Apetece-me vomitar….Começo a tossir de forma convulsiva. Tenho que sair deste lugar. Levanto-me de um só trago, de uma só conquista. Vou ganhando espaço e confiança.
Penso nas experiências vividas naquelas catedrais de vício e despeço-me delas com dor no espírito. Fico com vontade de mergulhar em água benta.
Bolso de forma violenta contra a parede e espirro consecutivamente. Estou a chegar ao limite das forças e acabou-se o pó. Não tenho tabaco e cheiro a vómito. Tenho saudades de casa e do que é comum. Preciso de dormir. Preciso de descansar e sonhar com mulheres nuas.
Ando lentamente para a praça de táxis junto ao velho cinema e suspiro a morada para o motorista. Este é dos silenciosos. Fecho os olhos e fico ali, na vigília, ignorante, inocente e ausente. Parado no tempo e nos espaços. Vou sendo interrompido pela rádio táxis e a voz metálica da operadora. Chego à porta de casa, pago educadamente e dou gorjeta. Não me quero afundar em moedas. O dinheiro diz-me pouco, mas não consigo viver sem ele. O elevador está avariado. Nove andares de ressaca até à terra prometida. Os lençóis sujos da minha cama de solteiro.
Sento-me nas escadas frias. Esqueço as figuras de estilo e adormeço sem luar.
 
 
Vicio II by MQ

Vicio - MQ



Vais sempre de táxi, sempre a pagar e a conversar com estranhos sobre existências que nunca foste capaz de existir. Numa desordem inimaginável relaxas e inventas uma narrativa, preenchida com personagens mirabolantes, filhas dignas de um conto de fadas.
Chegas ao destino e nunca pedes para ficar à porta. Vergonha do que possam pensar os motoristas de táxi, depois de teres construído uma teia de ilusão de mentiras complexas e macias. Passas num salto pelo multibanco para teres alguns trocos chorudos na algibeira do velho casaco coçado. Subornas o porteiro com uma nota de dez ou de vinte, num aperto de mão secreto, iluminado pelo detetor de metais e desces, desces, desces e desces até às profundezas dantescas de um salão de baile contemporâneo.
A música lenta e claustrofóbica inunda o vazio, espaço espacial partilhado por damas e cavalheiros e, numa escuridão sublime, encontras decotes e pernas a dar com um pau. Encaminhas-te lentamente para o bar e bebes de costas viradas para a multidão, envergonhado e chocado com a luxúria batida, promiscua e insinuante. Tudo parece de cristal e, de repente, tudo estala com uma violência memorável.
Aos poucos e poucos deixas-te ir, respirando fundo e abrindo mais um botão da camisa. Ris-te alcoolizado e escapas-te, paulatinamente, como uma sombra, para casa de banho dos homens, onde a luz branca e enjoativa te abraça como se de um amigo se tratasse. Olhas-te ao espelho e não te reconheces para além dos olhos castanhos, raiados de sangue e de sabedoria mordaz. Tomas o teu tempo e enches um copo de água que rapidamente bebes sequioso. Não te sentes confortável na tua pele e ali, à luz da realidade crua, tudo parece ainda pior. Sentes-te desenraizado e expatriado como um estrangeiro num livro de Remarque, ou mesmo como o próprio Estrangeiro de Camus. Tudo aquilo te parece absurdo. Pedes socorro a ti mesmo, sem mar, sem pé.
 
Vicio by MQ

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A Sul de Nenhum Norte - Charles Bukowski



Quando já tinha desistido de procurar livros do Bukowski publicados em Portugal, assim do nada, num daqueles dias de prospecção aos alfarrabistas lisboetas, por descargo de consciência, vi-me numa formosa e famosa livraria do LX Factory (a única deste espaço ímpar) a procurar títulos na letra B, enquanto fazia a digestão do almoço. Foi nessa altura que me deparei com mais um livro deste autor "maldito", desta personagem assombrosa e polémica que inundou a última metade do século XX com o seu talento vagabundo.

Era "A Sul de Nenhum Norte", uma colectânea de contos, bem ao estilo cru, ultra-realista, subterrâneo e ébrio do "dirty old man", Charles Bukowski. Escusado será dizer que o devorei em duas tardes. Fui com tanta "sede ao pote" que tive que o voltar a ler uma semana depois, só para ficar saciado.

É difícil eleger o melhor ou os melhores contos deste livro, aliás, leiam todos várias vezes e desfrutem. Vão ficar arrebatados.

Nota: 5