quarta-feira, 5 de março de 2014

Vicio - MQ



Vais sempre de táxi, sempre a pagar e a conversar com estranhos sobre existências que nunca foste capaz de existir. Numa desordem inimaginável relaxas e inventas uma narrativa, preenchida com personagens mirabolantes, filhas dignas de um conto de fadas.
Chegas ao destino e nunca pedes para ficar à porta. Vergonha do que possam pensar os motoristas de táxi, depois de teres construído uma teia de ilusão de mentiras complexas e macias. Passas num salto pelo multibanco para teres alguns trocos chorudos na algibeira do velho casaco coçado. Subornas o porteiro com uma nota de dez ou de vinte, num aperto de mão secreto, iluminado pelo detetor de metais e desces, desces, desces e desces até às profundezas dantescas de um salão de baile contemporâneo.
A música lenta e claustrofóbica inunda o vazio, espaço espacial partilhado por damas e cavalheiros e, numa escuridão sublime, encontras decotes e pernas a dar com um pau. Encaminhas-te lentamente para o bar e bebes de costas viradas para a multidão, envergonhado e chocado com a luxúria batida, promiscua e insinuante. Tudo parece de cristal e, de repente, tudo estala com uma violência memorável.
Aos poucos e poucos deixas-te ir, respirando fundo e abrindo mais um botão da camisa. Ris-te alcoolizado e escapas-te, paulatinamente, como uma sombra, para casa de banho dos homens, onde a luz branca e enjoativa te abraça como se de um amigo se tratasse. Olhas-te ao espelho e não te reconheces para além dos olhos castanhos, raiados de sangue e de sabedoria mordaz. Tomas o teu tempo e enches um copo de água que rapidamente bebes sequioso. Não te sentes confortável na tua pele e ali, à luz da realidade crua, tudo parece ainda pior. Sentes-te desenraizado e expatriado como um estrangeiro num livro de Remarque, ou mesmo como o próprio Estrangeiro de Camus. Tudo aquilo te parece absurdo. Pedes socorro a ti mesmo, sem mar, sem pé.
 
Vicio by MQ

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