Enquanto oiço a terceira sinfonia de Brahms e olho em frente para a folha de papel recordo-me que, hoje, ainda não me lembrei dela. Apetece-me escrever, criar e recriar, mas também me apetece dormir. Deitar-me de bruços no colchão poeirento do meu minúsculo quarto e deixo-me adormecer até depois de amanhã.
Chove lá fora.
Um estranho cansaço invade-me o baixo ventre. Uma sinistra letargia. Uma vontade de deixar o tempo trepar por cima do tempo. Sem a obrigação diária de o contar. Decido, então, graciosamente, ir preparar uma bebida. Jameson com Castelo e um chá preto forte para me aguçar as reminiscências e deixar fluir a escrita. Deixo-me estar. Recosto-me. Aprecio a música e a bebida encorpada. Deixo a ocasião morrer lentamente, como um duche de água quente. Levo um cigarro à boca. Acendo-o com um fósforo que, ainda quente, bate silenciosamente no cinzeiro que o meu avô paterno me ofereceu. Relíquia roubada de um casino. Mais uma das suas loucas e boémias noites.
Agora sinto o corpo a ficar ainda mais mole e apático. O motor arrefeceu e não vou conseguir cuspir uma palavra. Levanto-me e vou até à janela. Olho a rua por raros instantes. O trânsito de final de dia vai acumulando fiéis. Dirigem-se, em fila indiana, para o dia do julgamento final.
Recordo-me dos seus maravilhosos e sofisticados sapatos de verniz. Aqueles que levava quando saíamos para dançar. Para o ballet. Uma vez. Só uma vez, fizemos amor com eles calçados. Nem tirámos a roupa.
O copo está vazio e o chá arrefeceu. Diferente. Estou estupidamente tranquilo e erradamente calmo. Preciso de outro copo a transbordar memórias. Desta vez encho o copo até cima. Ignoro a fronteira.
Agora é a quinta sinfonia de Brahms que se faz soar. Mais doce. Menos distante. Um sorriso parece querer acordar no meu rosto barbudo. Mais um resultado mágico da fusão entre prazeres e recordações.
Ainda chove lá fora.
De repente, um poema surge-me no horizonte. Uma série de palavras cruzadas e enamoradas em verso. Sem significado, mas com alma. Metafísico. Uma intensidade eléctrica percorre-me o corpo, de fio a pavio. Começo a escrever sem pensar. Deixo-me ir. Deixo fluir. Deixo-me desabafar com o papel e esqueço-me da ampulheta. Movimento frenético. O cigarro apaga-se preso entre os lábios. Tudo são cinzas. Fecho os olhos. Afago cabelo. Respiro fundo. Cuspo o cigarro. Abro os olhos. Numa fúria rasgo a folha. Rasgo-a em pequenos pedaços. Minuciosamente. Até ver o fruto da minha criação perder-se para lá do infinito. Paro e bebo o resto do copo num só trago. Numa só voz. A música parou. Fico em silêncio.
Deixou de chover lá fora.
Vício IV by MQ